Deu voltas na cama sem conseguir adormecer de novo. Sentia-se vazia.
Fechou os olhos e veio-lhe à mente a imagem dele, que ela tão bem conhecia.
Gostava de ser como ele, de ver a vida com aquela esperança, com o optimismo que lhe era tão característico.
"Tudo se resolve, é preciso é ter calma" era o seu mote.
Ele, a pessoa mais ocupada à face da Terra e que mesmo assim arranjava sempre tempo para fazer mais qualquer coisa.
"O teu dia tem mais horas que o meu" costumava ela dizer-lhe.
Os olhos verdes expressivos dele riam-se enquanto dizia que sim com a cabeça em jeito de criança.
"É uma paz de alma, a personificação do estado zen" dizia a mãe dela.
E era verdade. A vida para ele era vivida ao ritmo dos acordes da guitarra, que tocava para ela ouvir. Sempre fora, sempre ocupado em trinta projectos, mas sempre com ela, com todos, em tudo. Era quase omnipresente. Tudo se faz, tudo se resolve. Mais uma música e um pôr do sol num miradouro.
Ela era o oposto. A agitação, o stress, o barulho, ria alto, falava alto, gesticulava. Vivia no caos mas o caos fazia-lhe confusão, duas tarefas ao mesmo tempo é impossível, para sair alguma coisa bem feita tem de ser sempre uma coisa a seguir à outra, ao mesmo tempo não. Os prazos, os horários, a vida dele e a dela, tudo a ser vivido a mil. E ele ao lado dela a andar a dez.
E ela bebia da calma dele. Gostava de ser como ele.
"Gostava de parar um dia" dizia ela.
"Se parar algum dia morro" dizia ele.
E ela admirava-o. A maneira como ele inspirava os momentos e retirava prazer no que fazia. Em tudo. E fazia-o bem. Com um olhar curioso, um coração maior que o peito, uma vontade de ferro. Os sonhos são feitos para se realizarem. E aqueles olhos verdes sonhavam e acreditavam e amavam. E ela sonhava com eles. E inspirava os momentos que os sonhos dele lhe traziam, as histórias que ele contava, as pessoas que ele guardava, o homem em que se tornava. E ela era feliz porque ao mesmo tempo que ele sonhava alto e longe, sonhava também com ela.
Mais uma volta na cama desconfortável. Para quê pensar nisto agora, já tudo foi dito, há mais sonhos para viver. Era nisso que tinha de canalizar as forças. Novas metas e objectivos. A vida dela não tinha deixado de ter significado. Ela lembrava-se que antes dele, ela tinha vida e sonhos. Parece tudo tão pouco. Os sonhos dele tornaram-se os seus, as histórias dele as suas. Ou a falta delas. Faltam histórias.
"Ainda não me mostraste fotografias" disse-lhe um dia.
"Ainda não as tenho" respondeu ele.
Gostava que tivesse durado mais. Valerá a pena pensar nisso outra vez? Criou-se um lugar no cantinho do coração que acabou por ficar vazio. Os sonhos dele deixaram marca e tudo o que resta é o vazio. Ficaram as recordações das pessoas, a vontade de ouvir as histórias, de partilhar. Viver por via indirecta também é viver. Se se sofre por outro, também se pode ser feliz. E ela sofreu e foi feliz. Agora ele continua a sonhar e ela sente-se sozinha.
"É o preço que pagas por te teres envolvido tanto" disse-lhe alguém num dia cinzento.
Lá fora está quase a nascer o dia. Vai ser outro dia cinzento. Tarde de chuva, a península inteira a chorar, diziam ontem à noite os GNR no mp3.
Guardou as lágrimas e enroscou-se mais na almofada. Amanhã é só mais um dia a ter de passar.
3 comentários:
e os dias cinzentos também passam. podem surgir de vez em quando, mas o inverno ficará mais pequeno.
parece um texto tirado de um livro. parabéns pela tua escrita.
abraço,
André.
Parabéns Sofia... Parece que qd se sofre, se escreve melhor... aqui, escreveste com o coração! Ou com os bocadinhos que tens dele...
Neste texto mostras sem vergonha alguma todos os sentimentos que se confudem dentro de ti... além de estares a sofrer, estás a amar...
Espero que este texto seja visto, lido e relido por alguém de direito!
Força!*
Anónima
oh miha sofia gaivota... :( Conheço tão bem esta historia...pena não estar agora na parte das lágrimas para te oferecer o meu ombrinho...
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